terça-feira, junho 14, 2005

A Festa

O celular toca, incessantamente. O proprietário do telefone não ouve, enquanto canta tranqüilamente embaixo do chuveiro. Ao sair do banho, verifica três chamadas não atendidas. O chefe telefonando numa sexta-feira de noite não é um bom sinal, reclama, em voz alta.
Retorna a ligação pelo telefone convencional.
- Olá, doutor Silveira. Vi que o senhor me ligou...
- Desculpe telefonar neste horário, José. Mas marcamos uma reunião para amanhã, às nove da manhã. Acho que esqueci de lhe avisar. Conto com a sua presença, é muito importante.
E a conversa entra em detalhes técnicos sobre design gráfico. Um cliente importante iria visitar a empresa na segunda-feira e, por falta de tempo, a reunião teria de ser no sábado.
Desliga o telefone. Suspira e grita:
- Eu sou muito azarado! Indeciso, vaga pelo quarto. Depois resolve se vestir. Quando termina de fechar o cinto, a campainha toca. Corre para atender, ainda arrumando a camisa.
Abre a porta e cinco homens, de mais ou menos 30 anos, entram bruscamente, rindo e conversando em voz alta.
- E aí, Zé, tudo bom, meu velho? Dizem, ao mesmo tempo. Carregam sacolas com cerveja, vodka, limões. Também trazem CDs e alguns DVDs. Antes que José pudesse falar qualquer coisa, a campainha toca novamente. A cena se repete, só que desta vez são seis mulheres e dois homens, em torno da mesma idade. Trazem bebidas e salgadinhos, também brincam com ele em voz alta.
José respira fundo. Abre a boca mas é interrompido por uma das mulheres, loura, com olhos castanhos. Ela sorri para José:
- Oi, Zezinho, tudo bem?, enquanto se atira em uma das poltronas e coloca as longas pernas com botas de cano alto em cima da mesinha de centro.
As 13 pessoas falam sem parar, sobre assuntos variados e as conversas se embaralham. Alguns vão para a cozinha, colocam as cervejas na geladeira. Uma das mulheres, morena, com cabelos longos, se dispõe a fazer a caipirinha. O rock n´roll ecoa pelo apartamento, misturado às vozes. José pega um dos amigos pelo braço e o leva até uma peça ao lado da sala em que o grupo está reunido.
- João, preciso muito falar contigo.
- É? E o que tá esperando, meu? Por que não falou antes?
José dá um sorriso e dispara: - É o que estou tentando fazer há quase meia hora. Seguinte: meu chefe me ligou faz pouco e tenho uma reunião importante amanhã. De manhã!
- Tá, qual é o problema?
- Tua pergunta é retórica, né? Amanhã de tarde o Zezinho vem pra aqui pra casa, tem que estar tudo arrumado, senão a Cristina reclama. Tu sabe como ela pode ser chata quando quer...
- Ex-mulher é um saco mesmo, Zé. Mas não te preocupa, a gente te ajuda a arrumar a casa!
- Sei! Como das outras vezes... A galera resolve sair para dançar e deixa para trás toda a sujeira. E ainda tem essa reunião amanhã de manhã. Não sei o que vou fazer.
- Pretende expulsar a gente, amigão?, pergunta João, com um ar de implicância.
- Claro que não! Mas que é uma situação complicada, isso é.
- Entendo teu lado, meu velho, mas acho que você se preocupa demais com as coisas. Relaxa, deixa rolar! Ainda mais com a Ana te dando a maior bandeira. Viu a cara que ela fez quando chegou? Está na sua, isso é certo. Vai perder essa oportunidade?
José não responde, fecha os olhos, suspira.
- Tá bom, tá bom. Mas se a gente sair, vou voltar cedo. Tenho que preparar um relatório para a reunião e passar uma camisa. Também vou tentar arrumar a casa antes de ir para o trabalho e...
Quando se dá conta, José percebe que João já saiu e conversa, animado, com o grupo na sala. Falam sobre a temperatura da cerveja que, na opinião geral, está perfeita.
José entra na sala e é recebido com aplausos. Ana olha direto nos olhos dele e questiona os amigos:
- Como a gente viveria sem essas festas na casa do Zezinho? Já faz seis meses que a gente se encontra aqui. É tão bom... Valeu mesmo!
E se abraça, abruptamente, no pescoço de José, que apesar da surpresa não demonstra nenhuma insatisfação com a atitude da loura. Se beijam, mas ninguém dá atenção ao casal.
À medida que as horas passam, as garrafas de cerveja acumulam-se em cima da mesa. Os diálogos estão mais exaltados e todos falam ao mesmo tempo.
José comenta com Ana que gostaria de mais uma caipirinha. Vão juntos preparar a bebida e tagaleram assuntos sem importância.
José olha o relógio instalado na parede da cozinha e grita:
- Não pode ser! Ana lança um olhar para a mesma direção e também surpreende-se.
- Deve estar errado, Zezinho. Faz muito pouco tempo que a gente chegou. Não podem ser cinco horas da manhã!
- Ana, a gente não se deu conta, só isso. E eu tenho que acordar às oito horas!
- Num sábado, que estranho!
- É, eu sei. Tenho uma reunião importante nesse horário.
- E por que você marcou o encontro com o pessoal para esta noite? Parece louco, Zé!
- Só fiquei sabendo quando tudo já estava combinado. Não tinha como desmarcar...
- Essa empresa que você trabalha deve ser bem ruim! Aonde já se viu marcar reunião horas antes?
- Não sei, Ana.
- Se você gosta de mim, não vá!
- Que é isso, mulher? Enlouqueceu? Quer que eu seja demitido?
- Ah, Zezinho, já tinha imaginado tudo. Eu dormiria aqui e faria um almoço gostoso só para nós dois...
- A proposta é tentadora, Ana. Mas não posso. E aliás, agora eu deveria tentar dormir, pelo menos um pouco.
- E vai me deixar sozinha? Ah, não! Não aceito isso!
Voltam para a sala. José com um copo de água na mão, bebendo avidamente. Ana, com cara emburrada, sorve a caipirinha recém-feita.
João aproxima-se do casal.
- E aí, resolveram discutir a relação já de cara? Apressadinhos, hein?
José não responde nada, abaixa a cabeça.
Ana grita:
- Ele quer dormir! Dormir!
O grupo ouve e resolve que já é hora de ir embora. Briga de casal é um sinal que a noite acabou. Ou pelo menos que devem ir para outro lugar.
João pergunta se eles não gostariam de ir para o Van Gogh, encerrar a bebedeira.
José reage: - Não posso, cara! Você sabe! Não sei porque hoje vocês resolveram me incomodar tanto!
- Ok, Zé. Não está mais aqui quem falou. Estamos indo nessa!
E as doze pessoas saem do apartamento, tentando fazer o mínimo de barulho.
Ana permanece na sala, os braços cruzados.
- Não vou embora, Senhor José Pinheiro Lambrosa. Esperei meses, ouviu bem, meses, por este momento.
- Aninha, minha linda, também estou muito afim de você, mas já lhe expliquei meus motivos...
- Eu sei, seu emprego é mais importante do que a primeira vez em que ficamos. Homens são todos iguais mesmo!
- Não venha me acusar de falta de romantismo. Só preciso muito dormir um pouco.
Ana muda a estratégia. Beija-o e oferece mais uma cerveja. José acaba aceitando
- Acho melhor não dormir! Já são seis da matina mesmo!
Ana concorda, sorridente.
Mas acabam se recostando no sofá e após alguns minutos adormecem.
José acorda com o sol batendo em seu rosto. Levanta-se, de um salto. Vê no relógio de pulso, que são quinze para as nove.
- Não acredito!, grita enquanto corre para o banheiro. Tira as roupas o mais rápido que pode e liga o chuveiro. Um minuto depois sai do banho e ruma para o quarto.
Veste camisa, calça, meias, sapatos.
- Estou pronto!
Vai para a cozinha, toma um café que restava na cafeteira e engole um comprimido para dor de cabeça. Pega a pasta que estava em cima da mesa da sala e depara-se com Ana dormindo, com os finos cabelos louros caindo por cima do rosto. Pára e fica observando-a.
Escreve um bilhete em que diz para ela esperá-lo e que havia adorado a noite.
Fecha a porta do apartamento e exclama em voz alta:
- Não lembro direito o que aconteceu na noite passada... Mas se ela dormiu aqui...
Desce as escadas, quase despecando pelos degraus. Consulta o relógio: Eram nove e 20.
Chega na porta do edifício, aborda um táxi e entra.
- Quero chegar o mais rápido possível na 24 de Outubro. Voa, se precisar!
O motorista atende o pedido e acelera o carro pelas ruas da cidade, tranqüilas como em toda a manhã de sábado. Fatam vinte minutos para as dez horas.
O prédio comercial estava deserto. O porteiro surpreende-se com a sua chegada.
- Vim para a reunião...
- Ah, sim, é naquela sala, doutor José.
- Não me chame de doutor, Bernardo. Você sabe que eu não gosto!
- Tá bem, o senhor é quem sabe.
Abre a porta e a peça, com diversas cadeiras em torno de uma mesa, está completamente vazia.
Senta-se, sem reação.
Neste momento, entra o Doutor Silveira, muito perfumado e com seu terno bem passado, como sempre.
José levanta-se, ajeitando a camisa.
- Doutor Silveira, eu...
- José, você sempre me surpreende, cortou o chefe.
- Desculpe, senhor, não tive a intenção de...
- Vai me pedir desculpas, José? Mas se a reunião estava marcada para as 11 horas e você é o primeiro a chegar. Um funcionário exemplar!
- Mas não era às nove horas, doutor?
- Sim, mas achei muito cedo e mandei mensagens de texto para todos alterando o horário. Você não recebeu em seu celular?




Flávia Cunha


Foto: Rua 24 de Outubro, Bairro Moinhos de Vento por Gilberto Simon- PORTO IMAGEM

1 Comments:

At 11:32 AM, Blogger Lunna Guedes said...

Que tal a opção de matar o chefe? Adorei o conto.
Beijos

 

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