sábado, agosto 06, 2005

MINICONTO: Muralhas da infância

O muro é alto.
Do outro lado outro mundo. Com pitanga, laranja madura, goiaba.
E bola de futebol.
A gurizada incentiva: vai, não desiste!
Acelero no cinamomo e freio no cachorro do general.

Ana Mello

Oficina de Contos


Deram-me um filho a vossa imagem e semelhança. Grande romance. Em nome do seu sangue dizem ter-se curado. Mesmo os céticos; também o escritor, onde na arquitetura das letras construiu seu próprio reino.
Edificaram edifícios para que suas vozes chegassem até mim. Não eram teatros, embora existissem palcos e atores. Alguns palcos e alguns atores. Daquele espetáculo, o romancista foi o protagonista. Tivera alunos que para terem seus nomes estampados nas vitrines, dispuseram-se a reescrevê-lo.
Pelas caixas acústicas limítrofes ao palco, milhares o escutavam. Os que não podiam ouvir esperavam de mim o milagre. Se pudessem virar-se ao avesso, entenderiam o que o opera. Sempre assisto aos testemunhos, como um mascarado rouba um beijo passando-se por outro. Dizia viver num mundo carente de seus próprios roteiros. Não se contentava com o imaginário. Assim compôs o exercício final do curso - criação literária. Os recortes de jornal que levara aos alunos foram os mesmos que o haviam trazido para o encontro do homem na cruz. Saiu pela rua amarela em direção à praça verde na orla do rio cinza. Coincidências que insistem em me culpar. Não quis assim, nem poderia salvá-los. Aproximou-se e disparou. Das cabeças escorria a nascente rubra que transformava o verde em laranja podre. Dois tiros. Dois mortos prateados de lua cheia. Futuras carniças. Corpos sem alma são alimentos da terra. Estavam juntos. “Um deles carregava uma mochila nas costas, caído de bruços. Quase encostado em um dos cadáveres havia um revólver calibre 32, com dois cartuchos deflagrados. Ambas as vítimas estavam vestidas de forma simples. Com um deles, foi encontrado o crachá de uma empresa.” Assim dizia o recorte. A multidão afundou-se no eclipse do fanatismo.
- Era necessário que o crime não parecesse latrocínio. Para o delegado, o revólver ao lado dava a entender que teria havido um suicídio após homicídio. Para mim, o melhor exercício que aqueles alunos poderiam ter. O sangue do filho tem poder, e eu sou a prova disso.
Escreveram os que buscavam conhecimento. Desenharam letras os que ambicionavam reconhecimento; destes, rastros daquele crime sem castigo, eternos nas páginas das coletâneas. Aquela da capa vermelha chegou às mãos do homem que podia portar armas. Delegado honesto, incansável na busca pela justiça. Vossa justiça, fundamentada na punição da alma. Cadeia substituindo o suplício, mente punida ao invés do corpo – que ainda tem alma, mesmo já sendo carniça.
Sobre o fundo vermelho, o título em branco: Rodízios. Sétimo conto, página trinta e três: Árvore do Diabo. Narrava o assassinato de dois jovens numa praça escura próxima ao rio. Do sangue de seus corpos nutriu-se a semente que gerou a tal planta. Para os maus – sem maiores discussões sobre o ser bom e ser mau - que comessem seus frutos, o próprio demônio vinha buscar-lhes a vida. O policial passou a freqüentar sebos e livrarias. A cada busca, novos contos, novos crimes. O Travesti da Rua Escura. As Crianças da Panela. O Vazio do Elevador. Ônibus para o Inferno. Trinta e Cinco Metros de Altura. Doce Veneno. Três Tiros, Seis Mortos. A Tesoura de Cortar Gramas. Dois Passos do Paraíso. Velório Coletivo. Todos premiados.
- Nas graças do Senhor, arrependi-me - Proclamava simultaneamente à impressão do futuro best seller “A Babá dos Bebês Mortos”, de Simplesmente Sofia, heterônimo de uma ex-aluna sua. - O sangue do filho tem poder, e eu sou a prova disso.
Pelo canto esquerdo do palco subiu o homem com uma sacola repleta de livros. Investigando as origens de cada escritor, chegou ao homem convertido. Jogou-lhe aos pés as provas da impunidade. Tiveram de sair pelos fundos. Algemado, entrou no camburão. Catarse.
Fora realizada a justiça dos homens.
Eu o perdôo.
Amaro Mylius



FOTO: Catedral Metropolitana de Porto Alegre - PORTO IMAGEM -Copyright © 2001-2003 Gilberto Simon All rights reserved.

sexta-feira, julho 29, 2005

Desocupe

A mão batia à porta, o som ecoava pelos cinco cômodos da casa. Cibele com os fones nos ouvidos e um livro na mão não escutava, nem que fosse uma bomba. Enilton em sono profundo e roncos mais altos que a batida nem se incomodava.
Seu Miller, seu Miller e repetidos golpes acertavam a porta daquele casebre que mais parecia um buteco. Um olho surgia na fresta da janela ao lado do homem engravatado que já batia o pé sem parar. Puxou um papel de sua pasta e o colocou na porta e partiu rumo a seu carro.
Quando o olho saiu da janela, correu até a entrada e ao abrir a porta leu: Ordem de Despejo.
Seu Miller adentrou a casa, parou perante Cibele e disse: “arrume suas coisas”, “de novo pai?”, “sim, e ande rápido”. Andou em passos largos até Enilton, deu um grito e falou: “levante-se e vamos embora”, “outra vez pai?”, “sim, e não reclame”. Vamos embora, as imobiliárias não gostam de nós, já é a quarta vez este mês.
André dos Santos Rodrigues



FOTO: Solar Palmeiro - uma residência antiga no centro de Porto Alegre, atualmente é um prédio da Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul - PORTO IMAGEM -Copyright © 2001-2004 Gilberto Simon All rights reserved

terça-feira, junho 14, 2005

A Festa

O celular toca, incessantamente. O proprietário do telefone não ouve, enquanto canta tranqüilamente embaixo do chuveiro. Ao sair do banho, verifica três chamadas não atendidas. O chefe telefonando numa sexta-feira de noite não é um bom sinal, reclama, em voz alta.
Retorna a ligação pelo telefone convencional.
- Olá, doutor Silveira. Vi que o senhor me ligou...
- Desculpe telefonar neste horário, José. Mas marcamos uma reunião para amanhã, às nove da manhã. Acho que esqueci de lhe avisar. Conto com a sua presença, é muito importante.
E a conversa entra em detalhes técnicos sobre design gráfico. Um cliente importante iria visitar a empresa na segunda-feira e, por falta de tempo, a reunião teria de ser no sábado.
Desliga o telefone. Suspira e grita:
- Eu sou muito azarado! Indeciso, vaga pelo quarto. Depois resolve se vestir. Quando termina de fechar o cinto, a campainha toca. Corre para atender, ainda arrumando a camisa.
Abre a porta e cinco homens, de mais ou menos 30 anos, entram bruscamente, rindo e conversando em voz alta.
- E aí, Zé, tudo bom, meu velho? Dizem, ao mesmo tempo. Carregam sacolas com cerveja, vodka, limões. Também trazem CDs e alguns DVDs. Antes que José pudesse falar qualquer coisa, a campainha toca novamente. A cena se repete, só que desta vez são seis mulheres e dois homens, em torno da mesma idade. Trazem bebidas e salgadinhos, também brincam com ele em voz alta.
José respira fundo. Abre a boca mas é interrompido por uma das mulheres, loura, com olhos castanhos. Ela sorri para José:
- Oi, Zezinho, tudo bem?, enquanto se atira em uma das poltronas e coloca as longas pernas com botas de cano alto em cima da mesinha de centro.
As 13 pessoas falam sem parar, sobre assuntos variados e as conversas se embaralham. Alguns vão para a cozinha, colocam as cervejas na geladeira. Uma das mulheres, morena, com cabelos longos, se dispõe a fazer a caipirinha. O rock n´roll ecoa pelo apartamento, misturado às vozes. José pega um dos amigos pelo braço e o leva até uma peça ao lado da sala em que o grupo está reunido.
- João, preciso muito falar contigo.
- É? E o que tá esperando, meu? Por que não falou antes?
José dá um sorriso e dispara: - É o que estou tentando fazer há quase meia hora. Seguinte: meu chefe me ligou faz pouco e tenho uma reunião importante amanhã. De manhã!
- Tá, qual é o problema?
- Tua pergunta é retórica, né? Amanhã de tarde o Zezinho vem pra aqui pra casa, tem que estar tudo arrumado, senão a Cristina reclama. Tu sabe como ela pode ser chata quando quer...
- Ex-mulher é um saco mesmo, Zé. Mas não te preocupa, a gente te ajuda a arrumar a casa!
- Sei! Como das outras vezes... A galera resolve sair para dançar e deixa para trás toda a sujeira. E ainda tem essa reunião amanhã de manhã. Não sei o que vou fazer.
- Pretende expulsar a gente, amigão?, pergunta João, com um ar de implicância.
- Claro que não! Mas que é uma situação complicada, isso é.
- Entendo teu lado, meu velho, mas acho que você se preocupa demais com as coisas. Relaxa, deixa rolar! Ainda mais com a Ana te dando a maior bandeira. Viu a cara que ela fez quando chegou? Está na sua, isso é certo. Vai perder essa oportunidade?
José não responde, fecha os olhos, suspira.
- Tá bom, tá bom. Mas se a gente sair, vou voltar cedo. Tenho que preparar um relatório para a reunião e passar uma camisa. Também vou tentar arrumar a casa antes de ir para o trabalho e...
Quando se dá conta, José percebe que João já saiu e conversa, animado, com o grupo na sala. Falam sobre a temperatura da cerveja que, na opinião geral, está perfeita.
José entra na sala e é recebido com aplausos. Ana olha direto nos olhos dele e questiona os amigos:
- Como a gente viveria sem essas festas na casa do Zezinho? Já faz seis meses que a gente se encontra aqui. É tão bom... Valeu mesmo!
E se abraça, abruptamente, no pescoço de José, que apesar da surpresa não demonstra nenhuma insatisfação com a atitude da loura. Se beijam, mas ninguém dá atenção ao casal.
À medida que as horas passam, as garrafas de cerveja acumulam-se em cima da mesa. Os diálogos estão mais exaltados e todos falam ao mesmo tempo.
José comenta com Ana que gostaria de mais uma caipirinha. Vão juntos preparar a bebida e tagaleram assuntos sem importância.
José olha o relógio instalado na parede da cozinha e grita:
- Não pode ser! Ana lança um olhar para a mesma direção e também surpreende-se.
- Deve estar errado, Zezinho. Faz muito pouco tempo que a gente chegou. Não podem ser cinco horas da manhã!
- Ana, a gente não se deu conta, só isso. E eu tenho que acordar às oito horas!
- Num sábado, que estranho!
- É, eu sei. Tenho uma reunião importante nesse horário.
- E por que você marcou o encontro com o pessoal para esta noite? Parece louco, Zé!
- Só fiquei sabendo quando tudo já estava combinado. Não tinha como desmarcar...
- Essa empresa que você trabalha deve ser bem ruim! Aonde já se viu marcar reunião horas antes?
- Não sei, Ana.
- Se você gosta de mim, não vá!
- Que é isso, mulher? Enlouqueceu? Quer que eu seja demitido?
- Ah, Zezinho, já tinha imaginado tudo. Eu dormiria aqui e faria um almoço gostoso só para nós dois...
- A proposta é tentadora, Ana. Mas não posso. E aliás, agora eu deveria tentar dormir, pelo menos um pouco.
- E vai me deixar sozinha? Ah, não! Não aceito isso!
Voltam para a sala. José com um copo de água na mão, bebendo avidamente. Ana, com cara emburrada, sorve a caipirinha recém-feita.
João aproxima-se do casal.
- E aí, resolveram discutir a relação já de cara? Apressadinhos, hein?
José não responde nada, abaixa a cabeça.
Ana grita:
- Ele quer dormir! Dormir!
O grupo ouve e resolve que já é hora de ir embora. Briga de casal é um sinal que a noite acabou. Ou pelo menos que devem ir para outro lugar.
João pergunta se eles não gostariam de ir para o Van Gogh, encerrar a bebedeira.
José reage: - Não posso, cara! Você sabe! Não sei porque hoje vocês resolveram me incomodar tanto!
- Ok, Zé. Não está mais aqui quem falou. Estamos indo nessa!
E as doze pessoas saem do apartamento, tentando fazer o mínimo de barulho.
Ana permanece na sala, os braços cruzados.
- Não vou embora, Senhor José Pinheiro Lambrosa. Esperei meses, ouviu bem, meses, por este momento.
- Aninha, minha linda, também estou muito afim de você, mas já lhe expliquei meus motivos...
- Eu sei, seu emprego é mais importante do que a primeira vez em que ficamos. Homens são todos iguais mesmo!
- Não venha me acusar de falta de romantismo. Só preciso muito dormir um pouco.
Ana muda a estratégia. Beija-o e oferece mais uma cerveja. José acaba aceitando
- Acho melhor não dormir! Já são seis da matina mesmo!
Ana concorda, sorridente.
Mas acabam se recostando no sofá e após alguns minutos adormecem.
José acorda com o sol batendo em seu rosto. Levanta-se, de um salto. Vê no relógio de pulso, que são quinze para as nove.
- Não acredito!, grita enquanto corre para o banheiro. Tira as roupas o mais rápido que pode e liga o chuveiro. Um minuto depois sai do banho e ruma para o quarto.
Veste camisa, calça, meias, sapatos.
- Estou pronto!
Vai para a cozinha, toma um café que restava na cafeteira e engole um comprimido para dor de cabeça. Pega a pasta que estava em cima da mesa da sala e depara-se com Ana dormindo, com os finos cabelos louros caindo por cima do rosto. Pára e fica observando-a.
Escreve um bilhete em que diz para ela esperá-lo e que havia adorado a noite.
Fecha a porta do apartamento e exclama em voz alta:
- Não lembro direito o que aconteceu na noite passada... Mas se ela dormiu aqui...
Desce as escadas, quase despecando pelos degraus. Consulta o relógio: Eram nove e 20.
Chega na porta do edifício, aborda um táxi e entra.
- Quero chegar o mais rápido possível na 24 de Outubro. Voa, se precisar!
O motorista atende o pedido e acelera o carro pelas ruas da cidade, tranqüilas como em toda a manhã de sábado. Fatam vinte minutos para as dez horas.
O prédio comercial estava deserto. O porteiro surpreende-se com a sua chegada.
- Vim para a reunião...
- Ah, sim, é naquela sala, doutor José.
- Não me chame de doutor, Bernardo. Você sabe que eu não gosto!
- Tá bem, o senhor é quem sabe.
Abre a porta e a peça, com diversas cadeiras em torno de uma mesa, está completamente vazia.
Senta-se, sem reação.
Neste momento, entra o Doutor Silveira, muito perfumado e com seu terno bem passado, como sempre.
José levanta-se, ajeitando a camisa.
- Doutor Silveira, eu...
- José, você sempre me surpreende, cortou o chefe.
- Desculpe, senhor, não tive a intenção de...
- Vai me pedir desculpas, José? Mas se a reunião estava marcada para as 11 horas e você é o primeiro a chegar. Um funcionário exemplar!
- Mas não era às nove horas, doutor?
- Sim, mas achei muito cedo e mandei mensagens de texto para todos alterando o horário. Você não recebeu em seu celular?




Flávia Cunha


Foto: Rua 24 de Outubro, Bairro Moinhos de Vento por Gilberto Simon- PORTO IMAGEM

segunda-feira, maio 30, 2005

Brincadeira de Criança

Há quarenta anos atrás, as brincadeiras da gurizada eram outras.
Jogar bolita, fazer pandorga, carrinho de rolimã, uma “peladinha” na praça, e, de vez em quando, ficar inventando alguma traquinagem da pesada.
Tudo começa com uma reunião dos guris na frente do prédio. Conversa vai, conversa vem, cada um conta uma vantagem, uma história que ouviu do pai ou do avô. Então os olhos brilham, todos se voltam para aquele que, no meio da conversa e das risadas, faz tudo parar, ficar em silêncio:
- Vamos passar graxa nos trilhos do Bonde?
Graxa nos trilhos do Bonde??
- Sim!!! E o que acontece, outro pergunta?
- Ele não consegue andar, patina.
Risada geral, ótima idéia! O plano começa a ser traçado. Onde conseguir a graxa?
- Na ferragem. E o dinheiro?
- Faz “vaquinha”.
Tudo certo, após discutir quando e onde comprar é claro, pois não pode ser perto de casa, para não deixar pistas.
Graxa na mão! Segunda etapa do plano: onde, qual o melhor lugar? Unanimidade:
- Na subida da Duque.
Chega então o grande dia. Todos a postos. É só passar a graxa bem passada conforme o combinado e correr para se esconder.
O Bonde vem, patina, patina, patina e desce. Patina, patina, patina e desce.
O motorneiro desce, esbraveja, grita, procura os culpados. Alguns passageiros desistem e seguem a pé. Até que chega a solução, colocar areia nos trilhos. O Bonde luta, faz força e finalmente segue seu caminho. A gurizada se encontra no lugar combinado e vibra com seu feito. Passam dias comentando tudo nos mínimos detalhes.
Hoje ensinamos nossos filhos a jogar bolita, fazer carrinho de lomba e até algumas “traquinagens”. Quanto aos Bondes, são histórias que podemos com saudades relembrar.
Por Ana Mello


FOTO: (1930) Copyright © 1997 - 2005 Ronaldo Marcos Bastos - Todos os direitos reservados.